O reencontro com um nome grande da defesa azul e branca: o duelo com Ivkovic, o dia em que Eriksson mandou tirar pressão às bolas e o respeito pelos portistas que iam até à Covilhã e ao Algarve
DESTINO: 80’s é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias dessa década marcante do futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. DESTINO: 80’s.
GERALDÃO: FC Porto (1987/88 a 1990/91)
Viena já lá vai, o bigode de Artur Jorge passa a ser Rei em Paris, chega Tomislav Ivic e o FC Porto quer mais, mais e mais. 1987, ano de todas as glórias azuis e brancas, título europeu, Bayern Munique enviado para a Baviera, certificado de fiabilidade alemã trocado por «FRÁGIL».
Plantel retocado nas Antas, nada de revoluções sem sentido.
Entram o mini-Rui Barros, o aveludado Jorge Plácido, o lateral Barriga, o anónimo Rui Neves e dois brasileiros: Raudnei para fazer golos e Geraldão para concorrer com Celso, Lima Pereira e Eduardo Luís no centro da defesa.
Geraldão, Geraldão, o que é feito de um dos defesas mais extraordinários que a Liga portuguesa já viu? O Destino 80s descobre-o em Belo Horizonte, homem de negócios, sempre ligado e atento ao futebol. Com o FC Porto no coração, claro, tal como em 2012, quando recordámos a batalha na neve de Tóquio.
O que se segue, durante 45 minutos, é o retrato cuidado e apaixonado do Porto dominador, castigador, implacável na transição das décadas de 80/90.
Geraldão, 53 anos (nãããooooo!), um senhor da palavra, gentil e atencioso, dispara a matar. Como na tarde em que fuzilou Tomislav Ivkovic. «Eu amo o FC Porto. E sabe porquê? Aquele balneário era obrigado a isso, a amar o símbolo e a respeitar os adeptos».
Mas há mais.
«O FC Porto era intenso em tudo. Um excesso diário: no treino, na entrega, na mensagem, na relação. Fomos orientados a abraçar o lema ‘Contra tudo e contra todos’. No balneário injetaram-nos raiva contra o Benfica e o Sporting. Tínhamos de odiar esses clubes, sempre. E a verdade é que eu, desportivamente, odiei facilmente o Benfica e o Sporting».
Não há qualquer engano nos dados de Geraldão. Quatro temporadas no campeonato nacional, 20 golos. 25 se lhes juntarmos as restantes provas oficiais. Grande parte, a esmagadora maioria, na cobrança de livres diretos, preferencialmente de longa distância.
O FC Porto sabia bem o que fazia ao apostar em Geraldão. No Cruzeiro, onde jogava antes de chegar às Antas, o zagueiro brasileiro [9 presenças na seleção canarinha] fez isto (ver aos 45 segundos):
Afinal, como se aprende a bater livres assim, caro Geraldão? «Instinto, treino e dom», responde o antigo pilar da defesa do FC Porto, arma mortífera em vários jogos, alguns absolutamente cruciais.
Ficou famoso, de resto, o duelo com Ivkovic. O guarda-redes do Sporting, avisado pelos jornalistas para o perigo do coice de Geraldão, anunciou estar preparado e até brincou com a perícia do brasileiro. Deu-se mal (ver aos 50 segundos):
«Ele era um dos melhores guarda-redes em Portugal, mas eu estava numa fase imparável», recorda Geraldão. «Li as declarações do Ivkovic e passei essa semana a treinar livres de todas as zonas possíveis e imagináveis. Meti na cabeça que tinha de marcar ao Sporting».
«O Domingos sofreu uma falta logo no início do Clássico e lá fui eu. O Ivkovic inverteu a posição normal da barreira, mas eu nem quis saber. Ele pensou que a bola ia para fora (risos). No final fui ter com o Marinho Peres, técnico do Sporting e meu amigo, e disse-lhe isto: ‘seu Marinho, diz ao goleirão que contra o Geraldão ninguém pode estar preparado. É impossível’».
Geraldão arrasou Ivkovic nesse Clássico das Antas, mas o primeiro golo de livre no FC Porto já tinha sido contra o Sporting. Geraldão teve de esperar um ano e meio até conquistar o direito de bater uma bola parada. Sim, um ano e meio.
«Eu cheguei ao Porto e havia Madjer, Sousa e Celso, todos especialistas nesses lances. Tive de esperar, claro. E foi em Alvalade, quando ninguém estava à espera. A bola estava muito, muito longe e eu disse ao André ‘vou arriscar, cara’. Ele vira-se para mim e diz logo ‘ui, tá bom Eusébio, arrisca’».
E em Alvalade começou o espetáculo de Geraldão nos livres, com Vital na baliza do Sporting.
«O Eriksson (Benfica) mandou tirar pressão às bolas por minha causa»
Geraldão conquistou em Alvalade o direito sagrado de se intrometer entre os batedores de livres do FC Porto. Nem sempre, porém, as coisas correram bem. Certo dia na Luz, por exemplo, por mais que tentasse a bola nunca chegava à baliza do Benfica.
«Marquei três livres e a bola saiu sempre morta. Protestei com o árbitro e ele não ligou. Mas eu tinha a certeza que alguma coisa não estava bem. No dia a seguir, o Ricardo Gomes e o Valdo, meus grandes amigos, confessaram-me tudo: ‘Geraldo, a primeira coisa que o mister Eriksson fez no balneário foi mandar tirar a pressão às bolas’. Eles tinham medo de mim e do Branco».
Com Domingos e Kostadinov a conquistar faltas no ataque, Geraldão e Branco tornaram-se um pesadelo constante para os guarda-redes contrários. Ficaram célebres nas Antas esses defesas goleadores, uma espécie claramente em vias de extinção, como o próprio Geraldão refere.
«Eu não entendo. As bolas agora são leves, desviam a trajetória facilmente e há poucos especialistas em livres. No meu tempo pareciam calhaus, pesados e duros. Não sei se é falta de treino ou de inspiração…»
As bolas paradas de Geraldão fazem parte da memória dos portistas, certamente, mas para o brasileiro o significado do FC Porto e as suas próprias memórias vão muito para além disso.
«Veja bem, eu cheguei para o clube campeão da Europa», começa Geraldão. «No primeiro dia de treinos as minhas pernas tremiam. E eu era jogador de seleção brasileira. Mas vi uma organização perfeita, um código de conduta híper-rigoroso, verdadeiros craques ao meu lado e interiorizei uma responsabilidade quase sagrada».
Os adeptos, omnipresentes, fizeram o resto. «Íamos à Covilhã e ao Algarve e a caravana de automóveis em nosso redor era impressionante. O Mlynarczyk, o João Pinto, o André, o Jaime Pacheco gritavam connosco e diziam ‘malta, estão aqui milhares de pessoas para nos ver ganhar e já fizeram centenas de quilómetros. Como vai ser?’»
Geraldão assegura, de resto, que ver o nome na convocatória de sexta feira era «um privilégio». «Esse era um dos momentos de maior tensão. O papelinho chegava ao balneário e lá íamos nós, espreitar a lista do treinador. Vi alguns colegas a chorar por não serem convocados».
Do Brasil, emocionado, Geraldão envia um abraço aos portistas e a Pinto da Costa, a Reinaldo Teles, ao dr. Domingos Gomes, ao roupeiro Moreno.
«A coisa mais maravilhosa que me podia acontecer era voltar ao FC Porto ou colaborar com o clube aqui no Brasil. Fui eu que indiquei o Pepe, o Alan, o Ezequias e o Léo Lima ao Marítimo, onde fui diretor desportivo. Todos acabaram por jogar no Porto».
Fonte: Maisfutebol