Este é o primeiro de três artigos sobre o discurso do treinador do FC Porto e a forma como encara as conferências de imprensa.
Na semana passada fui a um talho perto de casa. A ausência de carne fresca em casa estava-me a por maluco e decidi que não era tarde nem cedo para dar lá um salto e contemplar a enormidade de cortes e nacos de boi morto que pareciam chamar por mim como as sereias de Ulisses em versão ácido úrico. Mas eu gosto de carne vermelha e umas belas dumas dentadas naqueles tenros pedaços estavam a fazer-me salivar de antecipação. Eram ainda dez da manhã. O dia começava bem e as perspectivas eram imensas.
Desloco-me ao estabelecimento e ainda com os pés da parte de fora já ouvia algum reboliço lá dentro. Um fulano, segurando duas notas de vinte na mão esquerda e um enorme saco de plástico na direita, falava sozinho sentado numa cadeira ao canto do talho. E reparem, fazia-o numa sala com os seus 50 metros quadrados, onde pelo menos outros três homens brandem livre e legalmente alguns facalhões que fariam o Rambo corar de vergonha pelo canivete que trazia nas calças. E estão habituados a laminar carne com precisão, retalhar músculo e partir osso, como qualquer homem decente deveria saber fazer, nada de faquinhas de brincadeira para cortar peixe ou barrar manteiga, nada disso. Facas com F grande e com um F maior para quem se meter com eles. Um dia ainda vou pedir para lá passar um dia atrás do balcão, deve ser porreiro para limpar stress. E se me derem uma fiambreira para as mãos, fico com mais uma coisa riscada da bucket list. Don’t ask. Adiante.
O Manel, como ia sendo tratado pela simpática senhora da caixa, ia falando sozinho em voz bem alta, entoando algumas cantigas no meio da solta verborreia com nexo mas sem intuito. Foi então quando uma torrente de palavras mais enérgicas levou à reacção de um dos titãs das naifalhonas, que se virou para o pobre homem de t-shirt amarela e calças cinzentas gastas e lhe disse, com sotaque forte mas vernáculo contido: “Ouve lá, ó Manel, mas tu calas-te ou quê? Já não te posso ouvir, pá, ponho-te já lá fora!”. O resto dos clientes, enquanto esperavam o desenlace do confronto com um misto de apreensão e sorriso que se amarelou perante a forma mais ríspida com que a última frase tinha sido proferida, pararam à espera da reacção do Manel. Eu estava com eles, enquanto ia pensando: “O gajo vem ter comigo, eu sei que sim, tenho sempre uma sorte nestas coisas…”. Mas o Manel, incapaz de se atemorizar com tal vociferação, retorquiu desta forma que passo a citar:
“Uhhh, olha este, mas achas que eu tenho medo de facas, óbelá, tu não sabes que eu dei umas naifadas aquele preto em Vila D’Este? Duas, lanhei-le o braço e uma coxa…apanhei domiciliária dois anos…bati mal…tive de ir à psiquiatra ao terceiro andar e ela pumba, alprazolam duas miligramas…primeiro com água…depois com vinho…”.
Ninguém disse mais nada ao Manel. Ficou meio talho e 100% das cabeças de porco a olhar atónitas para o homem enquanto ele pagava e ia saindo a cantar o Ninguém, Ninguém do Marco Paulo. Não conseguia inventar isto se tentasse. E à medida que ia pensando naquele rocambolesca teatralidade, percebi que somos todos diferentes, uns bem mais diferentes que outros.
Por isso, Julen, quando bateres bocas com o JotaJota, lembra-te que ele é um bocado como esta personagem que aqui descrevi acima. Vai sempre haver alguma coisa nele que soa a boçal e que se tentares analisar com pinças nunca vais chegar lá. Não será alprazolam com vinho, com toda a certeza, mas é um nível a que tu não estás nem tens de estar habituado. Se lhe deres trela, ele vai continuar. Por isso sai por cima, não lhe dês troco. Chuta para canto e ganha-lhe no relvado. Se ele se espumar todo e for dar naifadas em gajos de raça à escolha em Vila D’Este ou em qualquer outro sítio, o problema é dele.
Fonte: Porta19