Estava-se em 1971. Período da “Primavera Marcelista” que
trouxe falsas expetativas ao país profundo, já que a nação centralista estava
bem, para seu bem. Enquanto no desporto continuava tudo em modo corporativista. Estando ainda
de fresca memória o susto apanhado pelo regime do sistema futebolístico BSB perante
a situação do FC Porto quase ter conseguido ganhar o Campeonato Nacional em
1969. Contra cuja possibilidade teve o regime de deixar passar pelo largo do Terreiro do Paço e pela sede da FPF o caso do jogo Sanjoanense-Benfica em que
os encarnados chegaram a estar com 12 jogadores efetivos em campo, e em vez de perderem
o jogo como era dos regulamentos, foram bafejados com repetição do mesmo, com o desfecho que se conhece… Ao que se juntou um erro interno, dentro do
próprio FC Porto, decorrente dum castigo aos melhores jogadores portistas, cujo afastamento da equipa acabou
por dar de mão beijada o título ao segundo classificado. Ficando aí a sensação que
esteve por um triz e era mais que possível o título nessa época de 1968/1969! Mas isso ficara de sobreaviso à
inteligência do regime, depois de tantos casos anteriores em que as manobras de
bastidores do sistema reinol foram dividindo os títulos de campeão, à vez, entre Benfica,
normalmente em dois ou três anos seguidos, e Sporting, intercalado num ano de
consolação, pelos anos 50 e depois nos 60 do país suspenso pela guerra
colonial. Em cuja situação o FC Porto, graças a seu estoicismo, mesmo assim
ainda ia conseguindo uma vez por outra meter uma lança em África, não no Ultramar
português, entenda-se, mas por cá no retângulo continental. Apenas como mais
não era possível, ia de quando em vez sendo conseguido ao Porto derrotar em campo os
clubes do regime. Como então aconteceu em 1971, no último dia de Janeiro. E
logo em grande, sem apelo nem agravo. A ponto de uma importante revista lisboeta dessa
época, O Século Ilustrado, ter dado destaque ao goleador desse jogo, Lemos, intitulando
como alarme para o benfiquista Eusébio – qual autêntico alarme ao Benfica… como
era o que ficava subjacente.
Acabou depois isso, mais uma vez, de forma idêntica ao
costume do tempo, com um castigo “federativo”, inventado passado algum tempo, de alguns jogos
de suspensão, então aplicado ao Lemos para ele não poder ser o melhor goleador
da época e impedir o FC Porto de continuar na luta pela conquista do campeonato.
Mas antes, indo por partes, aconteceu a célebre goleada.
Estava-se no último dia de janeiro de 1971, um domingo que era também o último santificado Dia do Senhor do primeiro mês do ano primeiro dessa década. Em tempo de antigo regime em que quase tudo girava em torno da capital do país, com televisão e tudo mais a enquadrar o panorama português.
A importância do jogo revestiu-se então com o curioso facto do
mesmo ter sido antecedido com anúncio público de ir ser transmitido na televisão
em diferido. Ou seja depois de terminado, seguiu-se retransmissão do jogo na
RTP, a televisão estatal e único canal televisivo nesse tempo. Assim pensado
porque obviamente não adivinhavam o que iria acontecer. Mas sucedendo que desse
modo pela primeira vez se viu um jogo completo do FC Porto na Radiotelevisão Portuguesa,
embora sem ser em direto (enquanto de outros clubes, além das muitas vezes de
Benfica e Sporting, até uma vez por outra inclusive de Belenenses, Setúbal e
Académica, tinham sido já várias as transmissões em direto ao longo dos anos). Mas
já era alguma coisa… quando mais que meio mundo não podia ir ao estádio, pelas
condicionantes naturais desses tempos, quão muita gente apenas acompanhava o
seu e nosso clube pelos relatos radiofónicos.
Disputou-se então na tarde desse domingo o interessante jogo que trazia ao Porto a equipa do Benfica, mais uma vez em tal superioridade que se deslocava em despreocupada entrada em campo. Só que, dessa vez, algo aconteceu…
Então, o Benfica de Eusébio e companhia saiu vergado das Antas por 4-0 graças a um póquer de Lemos. O pequeno grande avançado portista – que já havia bisado no clássico da primeira volta, terminado empatado 2-2 – arrasou por completo a defesa encarnada e assinou uma página inesquecível na história do FC Porto. No final, o “Müller português” recebeu (como prémio de oferta externa, de anunciantes publicitários) quarenta contos, correspondentes a dez por cada golo, e mais cem contos em tintas da “Dukaline” (firma que ao tempo era anunciada em todos os jogos nos altifalantes do estádio) e ainda foi presenteado com eletrodomésticos por uma loja da Invicta, recebendo mais precisamente um frigorífico, uma máquina de lavar louça e um gira-discos. Coisas que ao serem anunciadas pelos altifalantes do estádio, antes do início do jogo, para quem marcasse 3 ou mais golos do Porto, até provocaram sorrisos e risadas entre o público, mas no fim fizeram parte da grande euforia vivida. Cujos prémios depois foram distribuídos entre companheiros da equipa.
Note-se essa cifra monetária de “contos”, como era chamado popularmente ao dinheiro, nesse tempo da moeda oficial de escudos. Algo que agora já se tem de explicar, pela voragem entretanto ultrapassada no tempo e alterações político-sociais, ao logo do tempo já passado.
Pois foi, nesse que foi o jogo da vida de Lemos e de muita gente mais, efetivamente houve essa surpreendente marca no resultado, pelos números que não no resto. Sabendo-se que o Benfica apenas passeava superioridade por evidente proteção do regime, como era conhecido o facto de bastar os defesas vermelhos levantarem o braço em investidas dos adversários para os árbitros marcarem foras de jogo, assim como eram inventados penaltis quando a equipa do sistema encarnado precisava (não mais esquecendo o penalti inventado por Reinaldo Silva em 1962 /63, entre outros exemplos).
Lemos, que havia marcado nessa época de 1970/71 no estádio da Luz já na 1ª volta do campeonato os 2 golos portistas do empate a dois golos, alargou a conta com mais quatro nessa tarde de glória no estádio das Antas. Em dia que era de festa também por ser de homenagem ao Presidente Afonso Pinto de Magalhães, que estava praticamente a despedir-se da gerência do clube.
Sintomático da envolvência com que o acontecimento se revestiu, na edição do jornal O Porto, órgão oficial do clube ao tempo, foi narrada a euforia do cometimento esquecendo a ficha do jogo, por ocupação de espaço para o feito de Lemos e significativa homenagem ao “Timoneiro do clube”.
Com esse enfoque ganho, o então jovem Lemos mereceu alguma atenção da imprensa lisboeta, tendo tido destaque de capa e espaço interior na revista “O Século Ilustrado”, embora com um título interior e referências a remeter para sua antiga simpatia pelo Benfica, quando estava ainda na sua terra natal, em Angola.
Após isso, Lemos foi chamado à Seleção Nacional de Esperanças, quando se esperava que fosse incluído na Seleção A… E que falta fez em jogo da seleção principal que Portugal perdeu, em Bruxelas, por 3-0 diante da Bélgica, de apuramento para o Europeu, enquanto conseguiu ser bem útil na vitória da equipa portuguesa das Esperanças sobre a Espanha… por exemplo.
Depois disso é sabido o que aconteceu, mais para diante, com um castigo que lhe foi aplicado de 4 jogos sem jogar, mediante expulsão ocorrida no jogo em casa da CUF do Barreiro, quando ia à frente dos goleadores do campeonato, quase no final do mesmo. E volvidos tempos foi mobilizado para a guerra colonial, indo destacado para a Guiné.
Pese tudo isso, esse 31 de janeiro ficou para a história. Tal como no Porto se dera o 31 de Janeiro da Revolta de 1891, numa tentativa de alterar a situação política vigente nesses lustros, em 1971 Lemos, Custódio Pinto, Pavão, Rolando, Abel, Nóbrega, Valdemar, Manhiça, Rui, Leopoldo, Gualter, Bené e Ricardo derrotaram o sistema reinol, dentro do que ainda era possível por essa época.
De Lemos, o herói dessa grande alegria que tivemos, guarda o autor destas lembranças uma foto autografada pessoalmente nesse tempo (e uma outra recebida mais tarde, de oferta por meio de um amigo). E sobretudo está bem gravado no íntimo cá de dentro o que foi sentido ao ouvir o relato desse jogo, de ouvidos atentos cá longe e imaginação sentimentalmente perto. Como depois, ao final da tarde desse domingo 31 de janeiro de 1971, foi num deslumbre a vista do jogo em diferido pela televisão.
Armando Pinto
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