Não era verdade, Pai. Estavas errado. Mas já lá iremos.
Quem me meteu, então, o Dragão no peito, no espírito, na alma, à flor da pele? Como em muitos outros portistas, foi o meu Avô. E como, em que momento nos entra pelo corpo dentro esse sentimento estranho de pertença a uma tribo, a um clube de futebol? Um mistério, claro. Só sabemos explicar que, a dada altura da nossa infância, nos encontramos a chorar a um canto com as derrotas do nosso clube.
Mas como é possível? Como sofrer tanto por um clube de futebol ao ponto de chorar, pergunta a namorada. A minha e a de muitos outros, suponho.
Difícil explicar, mas nesta última crónica para o BibóPorto há, no mínimo, que tentar. Tudo terá começado quando entrei pela primeira vez nas Antas. Não sozinho, claro, mas pela mão do Avô e da Avó. Tudo começava cedo, num ritual cerimonioso e programado ao detalhe: os Avós a irem-me buscar a casa por volta do meio-dia, o cachecol já embrulhado ao pescoço, o Avô de luvas de pele para conduzir e a Avó a controlar as horas para irmos almoçar. Estacionávamos ali nas imediações e íamos ao Vitória. Domingo era dia de festa, dia de Família, havia que sentar à mesa e pedir umas tripas ou outro prato de sustento. Almoçava-se na verdadeira acepção da palavra, não se comia um hambúrguer ou um cachorro quente e, já devidamente alimentados, era tempo do meu Avô ir tomar o seu café ao Velasquez. Gente conhecida, amigos, conhecidos, parecia que todos os caminhos iam dar às Antas.
Uma romaria de gente. Um mar de camisolas, bandeiras e cachecóis desfraldados ao vento. Recordo estes Domingos com sol, muito sol. Embora também me lembre das chuvadas, algumas torrenciais, das capas para a chuva e dos protectores da sujidade das cadeiras. E depois os vários pregões, bancas e banquinhas, vendendo toda a parafernália do FC Porto a caminho do estádio, Fernão de Magalhães fora.
Vem-me à memória o antes e o depois da Torre das Antas. E a altura, surreal, em que tínhamos que entrar pelo estádio atravessando literalmente a bomba da gasolina ao meio, por entre encontrões e empurrões que fizeram com que a minha Avó fosse alvo das oportunistas e hábeis mãos de um carteirista, só dando conta do sucedido já dentro do estádio e sujeitando-se aos necessários e saudáveis sermões do meu Avô sobre o perigo de carteiras sem fecho éclair.
As filas para as bilheteiras, o cheiro a pipocas, a castanhas e a algodão doce. Os chocolates da Lion e os gelados dos vendedores. O barulho metálico e áspero dos torniquetes, no tempo em que se podia entrar nos estádios com bandeiras sem se ver nisso um acto criminoso. Depois disso, o nervoso miudinho, a entrada escura e sombria, fria até, com o bar envelhecido e sem graça, cheio de croissants e bolos de arroz secos e com aspecto de antes de ontem. O xixi da praxe, para libertar o nervosismo, no meio de casas de banho horríveis e a cheirar mal.
Tempo para ver o onze inicial nos dois ecrãs sempre meio estragados, pretos e de letras alaranjadas, com o reclame às Sapatarias Teresinha. E depois o momento alto, aquele que sempre me fascinou e que ainda hoje me deixa como uma criança: a entrada da equipa ao som do hino, papéis azuis e brancos ao vento, cornetas a tocar, multidão a gritar pelo Porto e o meu cachecol e o de todos orgulhosamente esticados lá no alto. Os jogadores a sprintar em várias direcções pelo terreno, aquela camisola azul e branca linda a contrastar com o verde resplandecente do relvado.
Vivi ali as grandes alegrias dos anos 90, quando quase parecia fácil ganhar e atropelar os adversários. Tenho saudades dos vários craques que por ali me habituei a ver jogar, assim como sinto falta do ambiente intimidatório que se criava nas recepções aos rivais. E depois aquelas equipas que nunca paravam de correr, organizadas, ritmadas, bem treinadas, cuja única palavra que conheciam parecia ser vencer. Tenho saudades desse clube. Como tenho saudades da invasão ao relvado, uma festa tão típica e tão estranha, com a necessária recordação de trazer um pedaço de relva para casa. Insignificante para uns, estranhamente simbólico e valioso para mim. Os finais de época nunca mais foram os mesmos sem essa comunhão portista, de pisar o mesmo relvado abençoado que os nossos heróis.
Vivi também tristezas. Derrotas duras como a de Barcelona com Aloísio a defesa esquerdo, a Sampdória em casa, os 4 em Manchester, o roubo no Olímpico de Munique, os penalties do Schalke no Dragão. Mas nenhuma como a manhã de 28 de Agosto de 1994, em que acordei para dar os parabéns à minha Mãe e recebi a notícia macabra da morte do Rui Filipe.
Muitas histórias lidas e ouvidas, da boca dos Avós e dos Tios, dos exemplares antigos da Stadium, daDragões ou das várias cadernetas que fiz. Os cantos directos do Pinga, o Hernâni, a morte do Pavão, o Oliveira, os golos do Bi-Bota, o Zé Beto, o Sr. Pedroto, o Verão Quente. Os treinos de basket, os heróis do hóquei em patins, o andebol. A educação portista, no fundo.
Já no novo século, a ida a Sevilha, onde estive com o meu Avô paterno, na última vez em que a saúde lhe permitiu sair do País. A viagem até Gelsenkirschen com o meu Pai, contradizendo o que me havia dito em Maio de 87. São corolário de todo um caminho trilhado nos anos 80 e 90. Toda a estrutura, toda a organização, toda a mística desembocou nesses dois anos de glórias, era o destino, quase uma consequência natural do ciclo que vigorava. Depois, claro, há Dublin e há o Kelvin, algo que hoje quase soa a um fim de festa.
É difícil de compreender o que o Porto nos faz, porque é que vamos macambúzios para o trabalho quando o Porto perde, porque é que mal deixamos esconder um sorriso que desponta quando o Porto ganha. Recordo vários momentos em Família à custa do Porto. Fins-de-semana em redor da televisão a acompanhar o clube, os penalties contra o Once Caldas que a Mãe irritantemente sabia mais cedo se entravam ou não através da TV da cozinha, uma certa reviravolta épica no Restelo, o golo mítico do Costinha em Old Trafford, entre muitos outros momentos. As viagens de autocarro com amigos para o Jamor. As idas à Luz com amigos de infância, de sempre e para sempre.
É difícil explicar isto a quem não o viveu, mas provavelmente ter-me-ei abraçado mais vezes ao meu Avô e ao meu Pai nas Antas e no Dragão do que noutro lado qualquer. Muitos vão achar estranho isto. Outros vão sorrir ao lê-lo, apercebendo-se de que é verdade, de que é mesmo assim.
O Porto é apenas um clube. Mas também é uma desculpa para o resto. E esse resto é tudo. Não me perguntes, pois, porque dou tanta importância ao futebol, porque afinal de contas não foi de futebol que falei aqui.
[Nota Final: Escrevi neste espaço, ininterruptamente, de 11 de Agosto de 2012 a 8 de Abril de 2016. Três anos e meio. Nem acredito. Primeiro com crónicas dos jogos fora de casa, depois com tema livre semana sim, semana não. Passou a correr. Diria que o convite do BlueBoy, a quem agradeço do fundo do coração, me foi endereçado ontem. Foi um privilégio e um orgulho escrever neste espaço, ler e aprender com as prosas de tão grandes portistas. O BibóPorto nestes anos tornou-se mais que um blog, ele foi um autêntico companheiro de bancada. Despeço-me com um nó na garganta e uma tristeza imensa. No entanto, ao folhear estas páginas, surge a esperança: fico definitivamente com a certeza que o FC Porto não morrerá nunca, pese embora as dificuldades por que possa passar. Somos sem dúvida como o poema:
Viva o FC Porto!
Rodrigo de Almada Martins
de Blog BiBó PoRtO